22 de mai. de 2008

Análise crítica da visão dicotômica de representação

Introdução

A representação da realidade é um importante instrumento de comunicação para os designers gráficos e de informação. Alguns modelos tentam dar conta da classificação desses diferentes modos de representação. Um modelo é o semiótico, baseado na iconicidade e similaridade. Num artigo publicado em 2001, no Information Design Journal, Elzbieta Kazmierczak defende que a representação por diagramas, embora seja abandonada desde cedo, no desenvolvimento das crianças, é superior. Segundo ela, a imitação que domina a cultura Ocidental está fundamentada na ênfase inadequada sobre a aparência, que desvia a atenção do que realmente importa, que é a essência. O texto a seguir demonstra que esse juízo de valor é precipitado e que a dicotomia entre imitação e representação é insuficiente para descrever o espectro contínuo da visualidade.

Tipos de representação

Segundo Kazmierczak (2001) temos duas formas principais de visualização: a arte imitacional e a não-imitacional, sendo que uma delas é materializada através de imagens e a outra por diagramas. Essas definições estão alinhadas com a classificação peirceana onde as imagens são ícones que representam qualidades visuais imediatas e os diagramas são ícones que representam relações estruturais (KAZMIERCZAK, 2001).

Outra distinção referente à imagem e diagrama, é que a primeira é usada para imitar a realidade e o último para representá-la. A imitação viria da tradição Aristotélica, em que a função da arte é o puro mimetismo, uma simples descrição da aparência da realidade. (KAZMIERCZAK, 2001).

Ao invés de imitar, designers de informação e designers gráficos usam diagramas para representar as relações dentro da realidade, tornando aparentes as relações lógicas e estruturais, antes invisíveis (KAZMIERCZAK, 2001).

Enquanto as imagens são ferramentas efetivas para modelar a realidade conforme a vemos, os diagramas são melhores para modelá-la conforme a entendemos. Por isso, diagramas requerem um alto grau de elaboração intelectual da realidade, ao contrário das imagens, que não tem essa exigência (KAZMIERCZAK, 2001).

Logo, a imagem, enquanto tipo de conhecimento advindo da realidade, é um agente de conhecimento visual. Já o diagrama é um agente de conhecimento conceitual, mais elaborado, portanto.

Imagem é inferior ao diagrama

Ao apresentar essa simples polarização entre imagem e diagrama, sob o ponto de vista semiótico, Kazmierczak (2001) faz parecer em seu artigo que o modo de representação literal é inferior ao modo diagramático, pois descreve apenas a aparência da realidade, ao invés de ir além, informando sobre suas relações.

Ela defende a superioridade dos diagramas, ao citar que as crianças começam a desenhar usando essas formas de representação da realidade, concentrando-se nas características e relações estruturais de um objeto, ao invés de focar na aparência imediata. Segundo ela, a maioria das crianças ocidentais, por volta da 5ª série, perdem o senso de encantamento com o desenvolvimento da forma, inclusive diagramas. Isso acontece quando comparam seus desenhos com o modelo cultural vigente e percebem que parecem estar falhando nas suas representações (KAZMIERCZAK, 2001).

Além de usar o comportamento infantil como defesa de sua tese, Kazmierczak usa a filosofia oriental como argumento. No Oriente, o paradigma que governa a representação é o diagrama, uma estética que se baseia em algo que não é a semelhança imediata com a realidade. Na cultura oriental, a aparência externa parece ter menos importância, sendo que as relações e a essência tem maior valor. Há uma oposição da regra ocidental do “mais e melhor” com o oriental “menos é melhor” (KAZMIERCZAK, 2001).

Diferentemente da cultura oriental, no Ocidente, a estética do realismo e a arte imitacional dominam a mídia e dirigem as expectativas do público em geral, levando a uma preocupação que enfatiza a aparência e define a imagem como um indicador da qualidade (KAZMIERCZAK, 2001).

Considerações sobre a visão semiótica de Kazmierczak

Entendemos que classificações semióticas são úteis no momento de estudar e analisar a realidade, e modelos taxonômicos servem para alinhar discursos e diferentes estudos sob as mesmas categorias, visando a economia de tempo e outros recursos.

No entanto, a semiótica, na tentativa de classificar conceitos e representações, descobriu que essa tarefa de reduzir o mundo a categorias não era tarefa fácil. O próprio Charles Peirce escreveu mais de 70.000 manuscritos (além dos que se perderam) na tentativa de sistematizar sua classificação, e não concluiu sua obra (NETTO, 1999). Isso pode ser explicado em parte pelo fato de que no mundo real as diferenças entre as coisas, idéias e conceitos não é tão simples assim.

O problema no artigo de Kazmierczak começa no uso do termo “representar” para diagramas e “imitar” para imagens, como se fossem ações de naturezas diferentes. A visualização da realidade se expressa em ambos os casos sob a forma de representação, sendo que o que muda é o grau de mimese e o objeto representado. A imitação que os artistas fazem da realidade, na forma de imagens também “representa”, do mesmo modo como os diagramas. Portanto, essa distinção entre imitação e representação para designar as formas de visualização parece inadequada e ambígua.

A separação entre “aspecto visível” e “estrutura inerente”, representados pela imagem pelo e diagrama, respectivamente, perde sentido quando se analisa a própria concepção de forma, que sempre inclui a estrutura (ALEXANDER, 1971; OSTROWER, 1987; WONG, 1998). Ou seja, quando um artista representa e descreve a realidade, a estrutura essencial dela está contida na imitação.

A forma resultante do processo de imitação, não é um processo passivo e, segundo Kazmierczack, desprovido de trabalho intelectual. Assim como o diagrama, a imagem é resultado de várias escolhas diante de tantas outras possibilidades de ordenação espacial. Essas decisões vem de processos de interpretação do meio físico e cultural, de necessidades, desejos, domínios de técnicas e tecnologias que viabilizam esses objetos (SIQUEIRA, 2006). Mais do que representar a realidade aparente, representa a condição humana.

Não bastasse o termo falho, para diferenciar imagem e diagrama, essa dicotomia sugerida pela autora não é real. O modelo mais próximo de representação da realidade refletiria uma gradualidade e não um cenário de pólos opostos e contraditórios.

Uma tentativa de descrever esse gradiente de representações, foi feita por Moles (1969) numa sequência crescente entre a imagem até diagrama, dando-lhe o nome de grau de iconicidade. Segundo ele, este grau liga-se em grande parte com a semelhança da imagem que é apresentada com o elemento icônico. O grau de iconicidade seria o oposto do grau de abstração, sendo inversamente proporcional. O grau de abstração refere-se à propriedade que uma imagem tem de descrever o mundo real, fazendo uma síntese dele.

O grau icônico pode variar entre dois extremos, que começam na representação concreta e vão até a abstração total, que é um signo que não tem relação nenhuma com o objeto representado, a não ser através de convenções culturalmente determinadas.

Num projeto de cartaz, Moles exemplifica de que maneira os designers aplicariam uma escala de iconicidade ou de abstração (veja Tabela 1) (MOLES, 1969). Ao invés de reduzir as representações a uma dicotomia simplória, ele se aproxima mais do contexto real, em que as descrições do mundo não são preto e branco, e sim uma mistura de tons, onde é difícil determinar onde eles começam e terminam.

Tabela 1. Extrato da escala de iconicidade adaptada ao cartaz. Escala de abstração crescente (MOLES, 1969).

Definição Critério Exemplo
0 O próprio objeto

Reduçao eidética no sentido de Husserl

O objeto de uma encenação teatral, a exposição, a vitrina da loja

1 Modelo 2D ou 3D Cores e formas realistas, variações de escala, materiais arbitrários Mostra factícia
2 Projeção 2D ou 3D Cores e materiais simplificados em função de critérios lógicos Fotografias realistas em cores
3 Foto P&B ou irrealismo das dimensões Projeção e perspectiva rigorosas, meias-tintas, sombra Catálogos ilustrados, cartazes, anúncios
4 Desenho ou fotografia, perfil salientado Operação visual do universo aristotélico, conceito de corte e isolamento, conceito de cofre de jóias ou pedestal, ausência de gravidade, continuidade do contorno e fechamento da forma Fotografias solarizadas, prospectos com cortes de fundo etc.
5 Esquema anatômico de construção

Abertura do envoltório, respeito da topografia arbitrária dos valores, quantificação dos elementos e simplificação

Corte anatômico de um motor de automóvel, carta geográfica, corte de uma máquina de lavar
6 Vista explodida, as peças são isoladas mas ficam em sua direção relativa Disposição em perspectiva das peças segundo suas relações de vizinhança, demonstração de uma ligação ou de um encaixe

Cartaz de argumentação técnica, cartaz relativo a uma família homogênea de objetos

7

Esquema de princípio, realizado com símbolos

Substituição dos elementos por símbolos normatizados, passagem da topografia à topologia, geometrização, sintaxe de uma linguagem

Plano esquematizado do metrô, publicidade que apela para a pretensão de tecnicidade do espectador

8 Organograma ou esquema de bloco

Os elementos são caixas negras funcionais, ligadas por flechas ou conexões segundo uma análise das funções

Organograma de uma empresa, cartaz político, argumentação de organização ou de ligação

 

Não bastasse a sua visão reducionista, Kazmierczak demonstra ainda juízo de valor em seu artigo, na medida em que defende a superioridade dos diagramas em relação às imagens. Segundo ela, crianças deveriam continuar desenhando diagramas e representando relações estruturais, ao invés de apenas mimetizar a aparência da realidade, e o ocidente seria beneficiado se seguisse o modelo oriental que enfatiza o “interior” e não o “exterior”.

Essa dicotomia lembra a antiga discussão sobre a superioridade do conteúdo versus forma, espírito versus corpo, visível versus invisível e o temporário versus o eterno da filosofia de Platão (PLATÃO, 2000). No entanto, conforme já se demonstrou, a distinção entre o interior e exterior, conteúdo e forma, não se aplica, visto que a forma também é conteúdo, assim como um diagrama também é imitação, só que em grau menor, e com foco em relações subjacentes e nem sempre tangíveis.

Talvez a intenção da autora, ao criticar a mimese imediata da realidade aparente, fosse questionar o comportamento fetichista da sociedade, que “adere” aos objetos significados e características que não fazem parte da sua essência “inerente”, num viés similar ao de Cardoso (1998). Sob esse ponto de vista, faria sentido fazer uma contraposição entre essência invisível e aparência visível. Mas a crítica não deveria ser contra a imitação do que se vê, mas o valor que se dá ao tangível.

Kazmierczak também argumenta que a ênfase na aparência externa seja cultural e, em parte, ditada pela mídia ou pela sociedade. No entanto, há pesquisas que demonstram que a preocupação com o lado exterior pode ser muito menos cultural e sim biológica. Um bebê nasce com preferências sobre a visualidade e faz julgamentos sobre a aparência imediatamente quando vê algo digno de atenção (ETCOFF, 1999). Se a importância sobre o aspecto externo fosse algo imposto culturalmente, bebês não demonstrariam preferências sobre fatores tangíveis. Mas não é isso que acontece.

Conclusão

Portanto, embora reconheça-se que a realidade possa ser representada de diferentes formas, e que imagens e diagramas refletem as duas formas principais, a separação dicotômica entre “imitação da aparência” e “representação das relações” é simplista demais. Ter consciência sobre os estágios intermediários de representação, presentes entre esses pólos, é mais útil para o designer que pretende representar a realidade com finalidade instrumental, visando atingir objetivos de comunicação.

Referências

Etcoff, N. A Lei do Mais Belo. Rio de Janeiro: Objetiva. 1999

Kazmierczak, E. A semiotic perspective on aesthetic preferences, visual literacy, and information design. Information Design Journal, v.10, n.2, p.176-87. 2001.

Moles, A. O Cartaz; tradução de Miriam Garcia Mendes. São Paulo: Perspectiva. 1969

Netto, J. T. Semiótica, Informação e Comunicação. São Paulo: Perspectiva. 1999

Platão. Fédon; tradução de Maria Teresa de Azevedo. Brasília: UnB. 2000

2 comentários:

Eduardo Ferreira disse...

Demais esse blog, ricardo! Vou gastar um bom tempo nele daqui pra frente! É bom pra mim como estudante encontrar críticas sobre textos e autores que nos recomendam na universidade, e que somos acostumados a engolir como verdades absolutas.
Só tenho uma dressalva a fazer, quando você fala das diferenças entre "representar" e "imitar". Na minha concepção, são coisas de fato diferentes, como coloca a autora, sendo que a primeira é mais comprometida com relações do que a segunda (não sei se é a análise mais adequada, mas representar remete de certa forma a "re-apresentar", mostrar algo de forma diferente, chamando a atenção a determinado ponto, enquanto "imitar" se restringiria a algo mais caricato, que o que importa mais é a idéia contida convencionalmente em determinado fato ou cena). Na própria arte abstrata o representar torna-se mais importante que imitar, uma vez que impulsos interiores são inimitáveis, embora representáveis.
Nos outros pontos, concordo. De fato, essas dicotomias e tríades semióticas são um tanto quanto limitadas, tanto que a questão do ícone se mostra não resolvida e insolúvel até hoje, apenas com propostas limitadas de resposta.
Muito legal. Obrigado pelos textos!

Anônimo disse...

Pensei que eu ia comentar e dizer pura tema, você fez por si mesmo? É realmente impressionante!