Introdução
Escolher a face tipográfica é uma das tarefas mais complexas e importantes enfrentadas por um designer da informação. Notadamente, a escolha da face tipográfica é um importante aspecto tangível não apenas em documentos mas em outros projetos de design como identidade visual, embalagens, websites, sinalização, dentre outros (THANGARAJ; OMAN e COOK, 1990; BRINGHURST, 1992; ROGENER, POOL et al., 1995; SCHRIVER, 1997; GOBÉ, 2001; CHILDERS e JASS, 2002; SPIEKERMANN e GINGER, 2003).
São muitos os fatores que influenciam essa decisão, como a adequação ao objetivo comunicacional, gênero, processo reprodutivo, condições de visualização, níveis de informação, idioma, contexto histórico, legibilidade, além do alinhamento retórico ao discurso da mensagem (BRINGHURST, 1992; SCHRIVER, 1997).
A adequação retórica, assim como os demais fatores, há muito tempo é objeto de pesquisas, identificadas sob palavras chaves como rhetorical typography, typeface persona, typeface suitability, text personas, typeface personality e assim por diante (WALLER, 1987; TRUMMEL, 1988; DIGIOGIA, 1995; LUND, 1999; BRUMBERGER, 2003b; a; BRUMBERGER, 2004; MACKIEWICZ e MOELLER, 2004; ARDITI e CHO, 2005).
Para Schriver (1997), não basta fazer um documento legível. A segunda característica importante para uma boa escolha de tipo é a adequação retórica, ou seja, a relação entre a face tipográfica, o propósito do documento, seu gênero, a situação e as necessidades, desejos e objetivos da audiência. Isso é importante para que a tipografia influencie a maneira como os leitores percebem, organizam e memorizam o conteúdo dos documentos.
Muito se fala sobre a escolha apropriada da face tipográfica, levando-se em conta os diferentes fatores da comunicação, mas uma das mais difíceis decisões recai sobre o valor semântico, no que diz respeito ao significado ou personalidade da forma da letra (SCHRIVER, 1997). A dificuldade vem do fato de ser um fator subjetivo, de difícil mensuração.
Pesquisas sobre personalidade tipográfica
Já faz tempo que se estuda a personalidade das letras. Dentre os primeiros estudos estão Poffenberg e Franken (1923) que avaliaram 29 faces e Brinton (1961) que utilizou a técnica do diferencial semântico para verificar a percepção por parte de grupos de experts e amadores.
Depois deles, diversos livros e artigos sugerem que determinadas faces possuem personalidades, tons ou vozes próprias e que é tarefa do designer decidir qual delas se alinha com o objetivo retórico do discurso tipográfico (WALKER, SMITH et al., 1986; TRUMMEL, 1988; BRUMBERGER, 2003b; a; BRUMBERGER, 2004; MACKIEWICZ e MOELLER, 2004). Esses estudos tentaram demonstrar que os leitores tem consciência e habilidades para fazer julgamentos acerca da adequação da face tipográfica (BRUMBERGER, 2003a). Dentre esses estudos, Jan Tschichold (1991) defendia que diferentes faces tipográficas tinham personalidades diferentes e que o caráter do tipo deveria combinar com o caráter do texto verbal.
Outros ainda argumentam que a linguagem visual da tipografia e outros elementos podem oferecer uma textura visual, tom e clima e que a linguagem sugere uma instância retórica: séria, conversacional, depressiva, energética, altamente técnica ou amigável (KOSTELNICK, 1990).
Até mesmo a defensora da “transparência tipográfica”, Beatrice Warde, em seu livro “The Cristal Goblet”, se contradiz ao reconhecer a força retórica do tipo quando diz: “Monte uma página em Fournier em oposição a outra em Caslon e outra em Palatino e será como se você tivesse ouvido três diferentes pessoas fazendo o mesmo discurso” (WARDE, 1956). Se a transparência do tipo fosse possível, essa contaminação retórica não ocorreria.
A pesquisa de Eva Brumberger
Num artigo de 17 páginas, intitulado “The Rhetoric of Typography: The Persona of Typeface and Text”, Eva Brumberger (2003b), faz uma tentativa de demonstrar que 15 diferentes faces tipográficas continham uma dimensão semântica própria, e que conhecê-las seria uma ferramenta para designers tomarem decisões sobre adequação retórica do tipo.
O método que Brumberger utilizou, tinha como objetivo investigar se os leitores associavam CONSISTENTEMENTE atributos de personalidade para faces tipográficas específicas.
Deficiências da pesquisa sobre personalidade do tipo
No entanto, ela mesma reconhece que o objetivo da pesquisa não era esgotar o assunto, mas servir de base para pesquisas futuras. E novas pesquisas vão ser realmente necessárias, pois o trabalho de Brumberger tem diversas deficiências e se baseia em premissas que já foram questionadas cientificamente.
A primeira deficiência do artigo refere-se ao argumento de que faces tipográficas tem personalidades particulares, CONSISTENTEMENTE associadas ao tipo. No entanto, Brumberger não deixa claro que essa personalidade não é consequência da face tipográfica e sim do seu uso dentro de um experimento controlado, em condições que não refletem uma situação real de uso. Ela mesma diz no seu artigo que “este estudo não visa simular uma situação típica de leitura” (BRUMBERGER, 2003b). Prova disso é que as amostras de faces tipográficas utilizadas nessa pesquisa mostravam o alfabeto completo (em caixa alta e baixa), com números e a frase “A quick brown fox jumped over the lazy dog”, que usa todas as letras do alfabeto. Essa situação de leitura não é comum, pois raramente todas as letras do alfabeto são encontradas juntas e dispostas na ordem alfabética. Portanto, não possui validade ecológica.
Além disso, todas as letras da amostra tinham o corpo 14 como referência. Isso também é um problema, visto que o corpo não mede a face tipográfica e sim a altura do tipo (SCHRIVER, 1997). Uma letra do tipo Script tem tamanho visual relativo bem menor do que uma letra não-serifada e isso é uma variável que pode interferir na atribuição de “personalidade”, configurando falta de validade interna na pesquisa.
Além do problema de validade interna e ecológica, a pesquisa de Brumberger tem uma deficiência conceitual: a forma das letras não encerra significado em si, como se fosse uma caixa que armazena sentimentos. O cérebro não julga o discurso tipográfico através da forma das letras e sim pelas relações no discurso, afetadas pelo gênero do objeto avaliado (BARRY, 1997; HOFFMAN, 1998).
As coisas não significam
O significado não está nas palavras, nem nas faces tipográficas, ele está nas pessoas (BERLO, 1929). E esse significado é construído segundo o contexto, de modo que cada situação pode modificar completamente a voz ou personalidade do signo. Não são as partes isoladas que conferem significado à forma e sim suas relações com o contexto, tanto no nível interno do objeto, quanto nos níveis fora dele, que incluem contexto cultural, fisiológico, cognitivo etc (SIQUEIRA, 2006). Como disse Fernando Pessoa, “o que vemos não é o que vemos, senão o que somos” (PESSOA, 1982).
Por essa razão, uma mesma face tipográfica, como por exemplo a Univers (Adrian Frutiger), pode ter “personalidades” diferentes, ora numa amostra em que aparece isolada de outros elementos, ora dentro de um layout repleto de outros fatores visuais como cor, fotografias, ruídos etc. Isso demonstra que a “personalidade” não pertence à face tipográfica e sim à relação dinâmica que surge num contexto de uso real. Isso é, em outras palavras, o que os gestaltistas chamavam de “todo maior que a soma das partes” (BARRY, 1997).
Julgamento inconsciente se baseia no todo
Não bastasse isso, o julgamento sobre a personalidade e adequação retórica de um tipo é feito muito antes da consciência, através da amídala cerebral. O neurocientista Joseph Ledoux demonstrou que milésimos de segundos antes de percebermos conscientemente alguma coisa, não apenas compreendemos inconscientemente o que é, mas decidimos se gostamos ou não dela. O inconsciente cognitivo apresenta à nossa consciência não apenas a identidade do que vemos, mas uma opinião ou julgamento sobre o que vemos (TISKI-FRANCKOWIAK, 2000). Essa opinião ou atribuição de uma “personalidade” tipográfica, quando vemos a forma de um determinado tipo de letra, é resultado do processo global perceptivo e não apenas da face tipográfica.
Efeito aura e a inferência sobre a personalidade
Outro fator que prova que a personalidade não é resultante apenas da forma tipográfica e sim da soma total de estímulos presentes no contexto, é o “efeito aura” (halo effect). Esse efeito foi estudado pelo psicólogo Edward Thorndike que descobriu nos humanos essa “tendência a fazer inferências sobre traços específicos, com base em uma impressão geral”. Shriver (1997) define o efeito aura como “a tendência de uma pessoa a superestimar ou subestimar a performance de uma pessoa, serviço ou produto com base em informações prévias, que tendenciam o julgamento”.
O efeito aura é um jeito de a mente criar e manter um quadro coerente e consistente para reduzir a dissonância cognitiva. Além disso, tem a função heurística, ou seja, “é uma regra prática que as pessoas usam para fazer suposições sobre coisas que são difíceis de acessar diretamente”. Conforme Rosenzweig, “não é tanto o resultado de uma distorção consciente quanto a tendência humana natural para traçar juízos sobre coisas abstratas e ambíguas com base em outras que são mais evidentes e aparentemente objetivas” (ROSENZWEIG, 2008).
Uma das consequências práticas do efeito aura acontece quando alguém olha um layout e é questionado sobre a “personalidade” da face tipográfica e o cérebro usa a impressão global do contexto para inferir essas características. Desse modo, dizer que o tipo Helvetica é mais “neutro” e o tipo “Script” é mais informal não condiz com esse comportamento. Uma mesma face tipográfica colocada em diferentes contextos, é afetada por “auras” diferentes, contaminando a impressão que se tem do tipo de letra.
Conclusão
Logo, atribuir significados permanentes ou uma personalidade a faces tipográficas específicas desconsidera a forma relativa como o processo perceptivo opera. Por isso, futuras pesquisas sobre adequação retórica deveriam avaliar a percepção tipográfica em contextos diferentes para estimar a forma como outros fatores visuais interferem na atribuição de significados.
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